15 Fevereiro, 5h48
Acordei e não consegui mais pregar olho. O vento uivava lá fora e sacudia os panos da tenda por onde entrava o brilho de uma lua bem cheia.
Dei voltas à cabeça para me entreter sem acordar os meus companheiros de tenda, pelo menos até a uma hora razoável para poder escapulir-me para o meio de um frio da era glacial depois de 10 horas sem ir à casa de banho.
Tudo aquilo estava a ser a experiência de uma vida…
Há pouco mais de um ano tomei a decisão de fazer uma formação para adquirir competências na progressão em alta montanha. Movida pelo sentido de cautela e um pouco de bom senso, achei que fazia sentido aprender alguns conceitos básicos antes de me aventurar montanha acima e praticar uma série de asneiras.
Apesar de estar longe de querer dedicar a minha vida ao alpinismo, 4 dias foram o suficiente para ampliar os meus horizontes a um nível inacreditável. A verdade é que dois mil e tal e metros bastaram para me sentir pequena. Ao mesmo tempo, a agressividade daquele ambiente também puxava por mim, desvendava e desnudava forças e nuances cá dentro completamente novas. Deixar o conforto do refúgio e atirarmo-nos a 3 noites em tenda, com direito a neve, vento e a um frio de rachar o corpo ao meio e a mais uns quartos, veio aguçar esse sentimento.
Seguimos, portanto, mais além e acima da Laguna Grande para a pernoita, desbravando a dureza dos caminhos da Serra de Gredos.
Campismo Invernal
Desde o primeiro ao último dia, e do nascer ao pôr-do-sol, que nos guiámos por uma rotina com rigorosa disciplina. De repente, do imenso tempo que parecia inicialmente haver, pouco ou nada sobrava. Desde o acordar ao deitar a minha atenção saltava de necessidade em necessidade: manter-me quente, hidratada, nutrida e com o merecido repouso de um corpo moído pelas exigências de um dia em intensa atividade. Para ajudar à festa, o frio parecia influenciar as minhas habilidades mentais, arrastando dolorosa e indefinidamente uma simples tarefa como encontrar um par de luvas acabado de descalçar.
Tornou-se rapidamente claro que o campismo invernal traz demasiados desafios. Não é fácil comer, vestir, despir, calçar, secar roupa, empilhar tralha, descobrir coisas cuja probabilidade é estarmos sentados em cima, preparar mochila todos os dias, e dezenas de outras minúsculas tarefas quase impossíveis de processar… tudo num humilde par de metros quadrados durante quase uma semana.
Todos os dias às 9 da noite aterrávamos enrolados no saco cama e as vozes na tenda ao lado silenciavam. A primeira noite, coincidente com uma forte vaga de frio depois de meses a viver um inverno sem chuva, foi a que ficou gravada para a posteridade. Talvez porque fiquei quase toda a noite desperta a rever mentalmente dicas sobre como aquecer os pés. Essa foi uma situação que apenas viu resolução na noite seguinte, com dois pares de meias, uma camisola usada e um casaco enrolados nos pés, quando finalmente consegui dormir que nem um calhau.
O dia-D chegou.
A cada amanhecer, a neve derretia e a paisagem mudava.
O tempo não estava fantástico. Por vezes o sol aparecia para animar, mas a neblina veio conferir uma certa mística ao acontecimento. Era hora de colocar em prática todo o treino dos dias anteriores, enquanto ascendíamos a um dos picos próximos a La Galana:
- equilibrados em crampons e munidos de piolet,
- encordados na nossa família na montanha e a quem confiamos a segurança,
- com a auto-detenção pronta a disparar em situação de queda,
- as amarrações na neve bem desenhadas,
- e a escalar e a rapelar com luvas demasiado grossas.
Um filme bonito.
Lembro-me de ter o piolet e os crampons espetados numa vertente suficientemente inclinada para me causar uma certa elevação no batimento cardíaco e da imagem dos nossos mentores uns quantos metros acima de nós. Exibiam um sorriso de orelha a orelha e até detetei ali uma ponta de orgulho a piscar no olhar. Foi quando relaxei e me permiti desfrutar em pleno daquele momento. Eu e o meu primeiro pico invernal. Isto é do caraças!
Viajei no tempo e fui aos confins da minha memória buscar a primeira vez que escalei em rocha e escutei, maravilhada, o João contar as suas 1001 aventuras na montanha. Hoje chego àquela vibrante conclusão “Endoideci”, e remato com um obstinado “E ainda bem!”
É certo que foi a experiência mais exigente e cheia de arestas agrestes. Mas foi também, sem qualquer sombra de dúvida, umas daquelas vivências e aprendizagens que valem tudo, só mesmo pela revelação e conquista interiores que se perpetuaram por todos aqueles vales e montanhas e mais além.