Já alguma vez sentiram um misto de felicidade e receio? Irei lembrar-me para sempre desta aventura pela rota no Maciço Central, pelas mais diversas e opostas razões. Uma verdadeira roda viva de emoções que realça o quão vivos e fora das rotinas enfadonhas de um dia normal estamos.
Vou contar-vos!
PLANEAMENTO
Convidei um amigo para uma autonomia planeada de 4 dias e 3 noites por caminhos marcados em rota circular pela Serra da Estrela, com início e fim em Loriga.
Este era o plano inicial, mas não foi o que aconteceu…
Nas semanas anteriores a esta aventura, tinha realizado um estudo pormenorizado das zonas e percursos onde iríamos estar, com especial atenção às rotas de fuga, e fui precavido com um mapa militar da região.
Em caso algum devemos empreender uma aventura assim sozinhos, por serras e locais remotos, e mesmo devidamente acompanhados nunca é demais informar alguém do nosso paradeiro, pois o perigo é acentuado na montanha, o tempo muda de um momento para o outro, e é muitas vezes aí que os acidentes acontecem…
Quando chegámos a Loriga, o topo da serra estava completamente encoberto, o vento uivava nos cumes e uma análise cuidadosa das imagens da Torre e das pistas de gelo convenceram-nos a mudar de estratégia. Teríamos sido muito doidos se mantivéssemos o plano original de 4 dias em plena montanha, sendo que a primeira noite seria na Torre, onde estavam previstas rajadas de 70 km/h, num cenário totalmente gélido.
Decidimos optar por uma semi-autonomia para os 4 dias de aventura, pelo que eliminámos uns 10 quilitos das mochilas para facilitar a progressão. Seguimos, então, para a nossa caminhada por parte da garganta de Loriga, entre lagos, montes e paisagens deslumbrantes. Quando queríamos fotografar agarrávamo-nos aos telemóveis com as duas mãos – estava tanto vento que facilmente virariam drone.
Um primeiro dia que facilmente entrou para o top 10, quando na passagem do lado Oeste para a zona Central da Serra fomos agraciados com um magnífico pôr-do-sol de cores fantásticas. Uma perfeita Golden Hour que deixou para trás uns tons de azul e roxo fabulosos.
Seguia-se o Covão D’a Ametade, o “Base Camp” das duas próximas noites.
As nossas refeições principais basearam-se essencialmente em noodles com cavala enlatada. Para durante a caminhada, a escolha de eleição foram naturalmente os snacks que devorámos com deleite, já para o pequeno-almoço, nada melhor do que ovos mexidos com café. E não vamos esquecer a última noite, a fase final e mais exigente desta grande caminhada, e para a qual reservámos a cereja no topo do bolo.
Uma dica que utilizámos para a confeção das nossas refeições: para economizar a água do nosso cantil, optámos por ferver neve para cozinhar os noodles.
A neve, além de ser fervida, deve ser sempre bem selecionada. Procurámos escolher preferencialmente neve da noite anterior, fresca e com uma tonalidade branca.
A AVENTURA COMEÇA
O dia da grande aventura chegou com um acordar agitado. A sensação era de que estávamos constantemente a ser atropelados por autocarros ou camiões. As rajadas de vento eram tão fortes que chegaram a dobrar a tenda duas vezes, mesmo estando encaixados no vale protegido pelas montanhas.
Apesar deste cenário aparentemente dantesco, corremos o fecho da tenda para revelar uma paisagem magnífica, os cumes cheios de neve e a fauna e flora a dar o ar da sua graça num bosque encantado.
Tomámos o pequeno-almoço e arrumámos o material de volta dentro das mochilas, enquanto avistávamos os primeiros caminhantes a avançar pela montanha.
Terminada a elaborada tarefa, era tempo de, também nós, nos fazermos ao trilho. Escolhemos o sentido contrário ao dos ponteiros do relógio – pelos vistos é o sentido desaconselhado. No final saberão porquê…
Começámos assim a subida, encostados ao Vale Glaciar do Zêzere, simplesmente fantástico.
Ao ritmo que subíamos, o solo desaparecia em dobro sob os nossos pés e, à nossa frente, estendia-se a magnífica paisagem que o tempo limpo nos permitia admirar.
Caminhámos entre ruínas de pequenas casas e currais, ao longo do single track que subia ligeiramente, sem nunca avistar os caminhantes que tinham cruzado o nosso caminho no início da manhã.
Lagoas brotavam pelo caminho numa paisagem de cortar a respiração. A serra picava o céu com os seus tons de cinza e branco, como num postal, e nós estávamos lá, a absorver o momento e aquela liberdade, a sentir o que é a vida, a verdadeira forma de viver…
Fraga do Vale Mourisco, Fraga da Risca do Bezerra, Ribeiro da Candeeira, Charco da Candeeira (onde avistámos os dois caminhantes a almoçar), Lagoa do Peixão… foram alguns dos lugares nobres que a nossa vista absorvia.
Bebíamos diretamente da água límpida que ali escorria através das pedras e do musgo que ajudam à sua filtração.
SOZINHOS NA MONTANHA
Finalmente chegámos à zona da serra coberta de neve e de imediato reparámos que não existiam marcas de pegadas, nem recentes, nem antigas. A partir dali, éramos apenas nós e os animais – a Serra para mim é extremamente bela com “meia neve”, assim temos um misto de tudo, paisagens verdejantes, castanhas e brancas.
A progressão na neve fresca é de uma dificuldade extrema se não utilizarmos equipamentos adequados, como as raquetes de neve. Sem esse material, foi um mergulhar no chão e uma constante de pernas desaparecidas, joelhadas nas pedras e um rebola e anda de quatro para cobrir uma maior área de contacto com o solo que, pura e simplesmente, desaparecia.
Quando o solo está descompactado, os bastões de caminhada são ouro, ajudando a verificar a sua consistência antes de se avançar e de se colocar os pés onde quer que seja. Muitas vezes o local mais seguro é pisar as urzes soterradas na neve.
A subida foi divinal, entre ribeiros que ainda corriam e outros congelados, atravessando zonas onde o sol não chegava de todo e por isso se formam autênticas estalactites de gelo, perfeitas e transparentes como o vidro.
Sempre acompanhados por um mapa físico para uma leitura mais correta das direções a tomar, chegámos finalmente ao cume e entrámos dentro das nuvens, onde tudo era branco, desde o chão ao céu. Não conseguíamos distinguir onde acabava uma montanha e outra começava, ou até mesmo se estávamos diante de uma parede de gelo ou de uma planície.
Assim que avistámos a placa que nos indicava a ida para a Torre iniciámos uma corrida desenfreada de felicidade. Clichés de montanha? Possivelmente. Mas soube bem como tudo, especialmente porque a brincadeira estava prestes a terminar. Ali estava o nosso ponto de viragem, onde tudo se tornou mais sério e os instintos puros de sobrevivência vieram ao de cima.
O DERRADEIRO DESAFIO
Íamos agora descer, novamente em direção ao Covão da Ametade. Eram apenas 3.5 km, parecia pouco. Nada nos tinha preparado para o próximo desafio, apesar de termos alguma noção do terreno que se seguiria e do que se adivinhava para as próximas 3 horas. Exigia-se pleno espírito de aventura, sentido de equipa, confiança mútua e fortes conhecimentos técnicos. Felizmente tínhamos tudo isso, ou nem sequer estaríamos ali. Mas…
Assim que nos afastamos da placa, envolvidos pelo nevoeiro, deixámos de ver as marcações. Bastava perdermos uma para irmos parar a um precipício, tão reduzida era a visibilidade. Estávamos no Covão da Clareza… Ironia?
Por fim, caminhando em direção às Salgadeiras, identificámos algumas marcas na neve, tanto humanas, como de animais. Estávamos diante de marcas de crampons, bastões e patas de um canídeo bem grande.
Agradecemos os sinais e seguimos o seu rasto até ao que parecia ser uma zona perigosamente elevada. Voltávamos, assim, a depender de nós, pois preferimos confiar na nossa técnica, no nosso sentido de orientação e também no nosso material.
Já não aguentava com as mãos frias e molhadas – ainda bem que tinha outro par de luvas na mochila – mas ainda consegui registar a nossa última fotografia antes da derradeira descida.
AGORA OU NUNCA!
Se de um lado das montanhas não existia vento, do outro lado éramos empurrados. Quando não havia mais por onde progredir, trepávamos pedras de 2 metros. A noite estava a cair e, se já era difícil ver bem, mais difícil ficou.
O chão cobria-se de neve e um passo em falso significava, no mínimo, uma perna partida.
O nosso instinto aguçava. Sabia que estávamos perto de um “Monstro” colossal, o Cântaro Magro (com 1928 metros de altitude), e tentávamos seguir para as Nascentes do Zêzere.
Era uma descida a pique, sem visibilidade, a noite já bem pronunciada. A única forma de descer era “de rabo no chão” e por duas vezes, mesmo assim, foi difícil travar. Da primeira vez, optei por enfiar o braço inteiro dentro da neve, na segunda vez a única opção foi abraçar uma rocha. Não há nada como a Montanha para nos pôr à prova…
Chegámos à base da segunda descida, depois de 200 metros de altura por 200 metros de comprimento. Onde estão os frontais? Até ali tínhamos feito todo o percurso sem luz artificial. Claro que sim! É mágico caminhar “às escuras” – o que a nossa visão consegue alcançar! – mas agora, diante dois grandes rochedos, dificilmente haveria outra escolha que não ter o auxílio do nosso material.
Já há muito que tínhamos perdido as marcações, mas a parte final deste trajeto eu já conhecia. Já ali havia estado, no berço do Zêzere, mas as condições eram outras. Só mais um pouco, só mais um esforço, uma última tentativa, sempre a contornar a beira do precipício e a planear a descida segura. Até que chegámos. Não queríamos acreditar.
Chegados à Nascente foi tempo de voltar a respirar. Até um pequeno vídeo fizemos. A neve estava tão vidrada e escorregadia. Que lindo!
A noite era agora bem cerrada. Descemos até ao Covão D’ Ametade pelo single track ladeado de vegetação até ao muro de pedra que marca o início do trilho. Estava ali o nosso final. Naquela altura compreendi perfeitamente a razão de não ser aconselhável realizar o trilho no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. O nível de dificuldade aumenta, e aumenta demasiado.
E agora sim. Era altura de abraçar a placa do início e final do percurso e de agradecer por toda esta aventura e pela segurança com que chegámos ao fim. Foi absolutamente mágico, como se todos os astros se tivessem alinhado.
Venha daí o banquete com queijos e enchidos da região para comemorar a vida de montanha. Menu assinado pelos Chefs. Não havia como não ter antecipado e apetrechado, de antemão, as mochilas com tal festim.
Só depois de termos a barriga cheia é que nos recolhemos aos nossos aposentos. A chuva não iria tardar, e ainda nos restavam 2 dias para outras fantásticas aventuras…
Ora esperem só! Super Frederico.