Duas semanas depois, com promessas de sol à janela e um baita sorriso na cara, olho para trás e vejo os traços que esta aventura desenhou em cada um de nós.
A Serra de Montemuro ainda faz parte do nosso imaginário, apesar das pegadas que fomos imprimindo nos seus trilhos de pastores, uma e outra vez.
Talvez seja a solitude daquelas paisagens quebradas pela dança das eólicas, da canção dos chocalhos dos rebanhos perdidos nas encostas, da neblina que trespassa os penedos que se elevam até às nuvens, dos vestígios culturais que contam histórias de boca em boca e largam planaltos de imaginação à solta…
E quando neva e a serra se veste de um manto branco denso e se isola do mundo, quando pensávamos que não dava para nos isolarmos mais? E quando nos dias claros e limpos absorvemos o atordoamento da Arada e São Macário, as curvas da Freita, a monumentalidade da Estrela e a graciosidade do rio Douro? Aquela ali é o Alvão? E ali mais além, será o Gerês?…
Partimos da Princesa da Serra por caminhos antigos da Transumância, deixámos a Gralheira envolta em nevoeiro e rasgámos os estradões até ao pico do Talegre e daí às Portas de Montemuro, onde devorámos, de um trago, o mundo, em silêncio.
Uma cadela que dava ares de ser novinha, deixou a guarda do rebanho para o seu irmão e rumou à aventura connosco. Atestado o insucesso de a direcionarmos de volta a casa, decidimos que, no pior cenário, a traríamos de volta no dia seguinte. Desta feita, e inspirados pelos resquícios do nevão dos dias anteriores, batizámos a miúda. “Anda cá, Nevada.”
Foi assim que, já avançados na serra adentro, o dia limpou e os picos despontaram com beleza a toda a volta. A aldeia de Aveloso apareceu ao longe para nos dizer que estávamos no bom caminho e à inusitada Irmandade de Montemuro, guiada por um cão Serra da Estrela, juntou-se um cavalo branco, uma vaca arouquesa e – quase – uma galinha. Ora, lá que nos abeiramos da era dos novos pastores, não havia dúvida nenhuma.
A Graça encontrou-nos lá na aldeia para nos dar as calorosas boas-vindas e levar-nos por um caminho secreto, ao longo da levada, até ao alto do São Pedro, e foi num belíssimo miradouro natural que estendeu a toalha do lanche para os bolinhos e o café. Será que nos podemos habituar a isto? Sim, Montemuro é Casa.
Mas ala que o sol estava a descer, o frio a romper e o nosso pastor Fernando, a sua esposa Cila e a dona Armandina esperavam por nós na capela para o jantar que deu nome a este programa. Venham de lá os Serões na Serra, que a panela ferve ao lume carregando os aromas e as histórias do antigamente em volta da lareira, com a bênção do senhor padre que se juntou a nós à mesa nesta partilha em comunidade.
Um muito obrigada parece muito pouco para transmitir fielmente este sentimento que se elevou dentro de nós e que nos aqueceu durante o rigor de uma noite de inverno, ali encolhidos no calor dos sacos cama, junto ao fogo que crepitou toda a noite.
Foi com alguma renitência que nos despedimos dos nossos anfitriões na manhã seguinte, o vale do Bestança orientado na bússola e o Douro nas nossas costas, mas já que era para subir, que fosse tudo de uma só vez. Ah, catano! Venham daí, que o dia amanheceu lindo, o sol brilha e o corpo está quente.
Cada um, na sua peregrinação interior, regressou desta viagem no tempo ao seu belo ritmo e prazer, enquanto se aproximava de novo ao topo. A realidade foi assentando pé ante pé, sem se fazer sentir de forma abrupta. A Nevada circulava entre nós, marcando a sua presença. Uns dormitavam ao sol, na pausa do almoço, atrasando a desgraçada da subida. Outros partilhavam da conversa que saltava animada de colo em colo. As gargalhadas corriam que nem um rio após uma forte chuvada e vi pelo canto do olho a Nevada surrupiar-me o queijo.
Acho que é isto. É este o momento que eu trouxe comigo, a imagem viva de um grupo unido com pessoas muito únicas e diferentes umas das outras que outrora não se conheciam e que hoje fazem parte de algo bonito juntas. O amanhã promete!
Dito isto, um bem-haja a todos e até à próxima Aventura 🙂
Resta-me transcrever as palavras da Diana que compõem esta Aventura e que retratam a sua jornada por Montemuro:
“A transumância é o deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições durante uma parte do ano.”
Será que também nós teremos a necessidade de movimentos de Transumância para condições mais favoráveis ao nosso crescimento? Teremos nós a necessidade consciente que o frio se instale? Estaremos nós a fugir para o silêncio nesta Era do ruído?!
Um pensador do meu mundo diz que o “Inverno desnuda e o frio entranha-se até à raiz. É nesse lugar que se funda a Primavera.” É a necessidade de nos explorar, de fazer nascer e crescer flores que nos afundamos em idas e voltas nas nossas deslocações “transumâncias”.
Cada um foi em busca de um sentido e do seu sentido. Cada um entrou com tudo o que tinha e saiu mais cheio “de tudo um pouco” dos outros! Porque podemos não ir onde pretendíamos ir, mas acho que acabamos sempre por ir para onde precisamos de estar. Ficamos exatamente como deveríamos e isso só foi possível com a Presença exatamente de cada um.
Cada um na sua fé, absorveu o significado de “ Presença” que o Padre Adriano nos deu da sua religião. No seu respeito pelo próximo, colocou a cifra do sentido de presença. Presença Aqui, presença Ali, presença do outro e sobretudo presença em si.
Porque A Palavra “presença”, implica a minha, a tua, a dele, a dela, do espírito das miúdas do trail, da miúda que tinha tudo menos as botas, da bióloga, do saco do lidl, do cuidador de fogo, do pé de princesa, do rapaz dos trails longos, da Ritinha, da joaninha, da Arada, da miúda com dedos de gelo, da torneira aberta e da “mãe”.
Porque a presença implica olhar para dentro, olhar para fora. Implica sentir. Sentir implica pensar e pensar obriga a presença e consciência da vida. Da nossa vida. É por isso que fazemos os nossos movimentos de “transumância”.
Porque cada homem trás suas dores secretas que o mundo não conhece, todo o homem carrega na sua mochila memórias e pensamentos que faz dele o comportamento e opções de hoje.
Cada um, na sua presença, sentiu o quentinho do jantar feito pela D Cila e pela D. Armandina. Cada um retirou e saboreou o fumegar dos frutos da dedicação do Sr. Fernando!
Cada um, na sua Presença, contribuiu para a sua busca das infinitas razoes que existem à sua volta para serem felizes, para estar de bem com vida.
Porque em duas palavras posso resumir tudo o que aprendi sobre a vida: ela continua… E é bom que continue feliz, em busca de um sentido e num estado de Presença. Porque cada presença é um mundo. E “Todo o mundo é feito de fé, confiança e pó mágico.”( JM Barrie, Peter Pan)
Da nossa Diana 💚