Por vezes o melhor plano é não ter nenhum e a minha travessia em bicicleta pelas Montanhas Mágicas seguiu esta premissa quase ao pormenor. As serras lá estavam, umas a seguir às outras, num circuito mais ou menos circular. Dez dias deveriam chegar para viver a magia destas montanhas e, caramba, são mesmo mágicas.
Os desafios de começar.
Escolhi um ponto de partida e uma etapa de uma rota já existente que me levaria para norte, em direção a Arouca. Se tudo corresse bem teria onde dormir a primeira noite, a segunda logo se veria.
No total foram 350 km e pouco mais de 9.000 metros de subidas macacas pelas serras da Freita, Arada, Montemuro e Arestal, com uns quantos afundanços nos rios Bestança, Paiva, Frades, Teixeira e outros mais por ribeiros e riachos perdidos pelo caminho.
Atirei-me de cabeça ao projeto da Grande Rota 60 das Montanhas Mágicas, concebida para atravessar este cenário paradisíaco no centro de Portugal, mas rapidamente o abandonei. Estava longe de que a motivação principal desta aventura fosse um desafio que me deixasse absorvida numa luta com o trilho, em lugar de me deixar descobrir com calma e vagar o espetáculo da natureza que são estas serras.
Assim, segui o ponteiro do meu coração e, enquanto serpenteava pela serra abaixo com o vento a acariciar-me as ventas, tive a certeza de que naquele lugar tão especial, a virtude estava seguramente no meio.
Recordo a primeira noite com emoção, para os lados da Frecha da Mizarela. Não havia ninguém, não havia vento, não se ouvia nada. Em contrapartida, tudo dentro de mim mexia e se fazia ouvir. Era entusiasmo, medo, ansiedade e felicidade, tudo ao mesmo tempo. Dei comigo, inclusivamente, a pensar no tempo, outra das nossas batalhas na vida, e tempo era coisa que eu finalmente tinha aos pontapés.
A primeira coisa que comecei a notar foram os diálogos, constantes e cada vez mais intensos, como se duas Andreias pedalassem lado a lado. A seguinte constatação, aliás, a mais difícil de gerir emocionalmente, foi de que conseguia ser tão extenuante e exigente comigo própria do que alguma vez imaginei.
O que demora a largarmos os objetivos e os propósitos das coisas, a deixarmos de medir tudo aquilo que fazemos e a permitirmo-nos apenas à LIBERDADE de nos deixarmos IR e de apreciar a VIAGEM.
Uma vez atravessado este processo looooongo e chato, dormir ao relento passou a ser, então, muito mais giro, deslizar pela serra enquanto o sol se punha, mais espetacular ainda, e enganar-me no caminho, simplesmente, do melhor.
Do meu varandim de Mourilhe, em Cinfães, deixei-me absorver por tudo aquilo que acontecia à minha volta. O cintilar das estrelas e a brisa embalavam-me até adormecer. A meio da noite, escutava os animais aproximarem-se e distinguia dezenas de pontos luminosos a piscar no meio da folhagem – confesso que isso abanou os alicerces da minha sanidade mental por um momento ou dois. Mas… a vontade desgraçada que eu tinha de chegar ao final do dia e de virar a minha bicicleta ao contrário só com um tarp por cima.
Afinal era possível pedalar pelo carrossel das montanhas mágicas sem ir o caminho todo a protestar.
A verdadeira aventura.
Cheguei ao meio da aventura. O dia cinco voou comigo a subir a serra de Montemuro à boleia devido à infeliz realidade dos incêndios que deflagravam por aí.
Mas, porém, todavia, contudo, e mais conjunções houvessem, se achava que numa viagem de bicicleta não teria tempo de desencantar um passeio de kayak no rio, de pastorear as vacas na serra e de me desgraçar ao jantar com postas arouquesas na casa de amigos, estava muito enganada. Foi assim que, apesar de ainda dormir ao relento com convicção, deixei que duas noites me relembrassem os prazeres de um colchão. E as saudades que eu tinha de um shampoo?
Andava eu a derivar por Alvarenga e Bustelo, sempre a pedalar, à espera de uma aberta dos fogos, e sem nunca deixar de acreditar que o caminho continuaria a desenhar-se confiante diante de mim. Até que chegou o dia da despedida e de partir novamente serra abaixo por Meitriz até Covas do Monte.
Estava a tornar-se uma tarefa difícil encostar à beira da estrada, sem no minuto seguinte encontrar-me no quintal de alguém que me oferecia água fresca, um duche e um lugar à mesa ao jantar. Este abraço brusco que caía a pique pelas fragas da Arada era tremendamente irresistível e não havia como dizer não.
Uma vez mais, encontrei-me perdida na matemática dos dias. A bicicleta ficou encostada a uma laje e o vale convidou a descer a pé à descoberta das gargantas desta serra cheia de personalidade.
Nove dias não é tempo nenhum e é uma vida. Sentia-me igual e sentia-me diferente. A paz inundava-me, apesar das saudades de quem esperava por mim em casa, e comecei naturalmente a colocar o chip do regresso, mas só depois do desvio ao Alto de São Macário e de uma meditação vertiginosa no Portal do Inferno.
Foi um daqueles dias que pareciam dois. Primeiro porque voltei a madrugar para subir a Arada pela fresca, depois porque chegado à Freita, voltei a largar a bicicleta num arbusto para ir espreitar os canyonings do Rio de Frades. E para não quebrar esta atmosfera familiar que reina nestas serras, aqui cheguei no pico do calor, e aqui me receberam na cozinha da D. Alice. O que me vou emocionar sempre com isto.
Esta aventura trouxe-me tantas descobertas além do horizonte como das interiores. Falou-me ao ouvido sobre a simplicidade e sobre a humildade. Desbravou caminho através da coragem e resiliência, até atingir a vastidão e a grandeza do espírito. Descobri o pote de ouro no fim do arco-íris. O meu tesouro tinha finalmente nome, chamava-se Amizade. Parti sozinha nesta aventura e vi-me rodeada de amigos que me acompanharam nesta jornada e de pessoas muito especiais que me deram a mão, cama ou um terreno para montar a tenda, que me fizeram o jantar e me juntaram com a família à roda da sua mesa. Um muito obrigado não vai ser suficiente, mas a minha vez de retribuir chegará, por fim.
A minha casa.
Já cá tinha estado antes, em Minas do Rio de Frades, bem como empreendido a árdua tarefa de subir o Trilho do Carteiro em direção a Cabreiros, mas não com uma bicicleta às costas, não… Fica a história do arco da velha para contar à lareira de alguém e, talvez, de se ver mais um ponto acrescentado.
Enfim, a minha última noite desta viagem, e também a mais fria. O vento levantava e o céu ameaçava chuva. Felizmente, eu já tinha um sítio onde dormir e estava quase a chegar. A antiga escola primária da aldeia é hoje sede do EC/DC e promove a prática do Canyoning em Portugal. Eu tinha, assim, um teto para aquela noite, tinha um duche lá fora, tinha uma casa de banho, tinha eletricidade para carregar os equipamentos e tinha café para o pequeno-almoço no dia seguinte. Que mais luxos queria eu?
Pouco passava das vinte e uma, o cansaço era gigante e as pernas sentiam aquela moinha da temperatura a mudar, mas a cabeça não desligava. Que aventura fenomenal.
Eu tinha tanto desejo de chegar a casa como aquele de voltar ao dia um desta viagem, com o mirabolante esboço de plano cheio de buracos e demasiada margem para deixar muita coisa acontecer.
Já era perto da meia noite quando adormeci, e havia um leve receio de acordar de manhã com um marasmo qualquer de último dia. O que eu não sabia, no entanto, era que o caminho que me iria devolver ao meu carro, estacionado em Sever do Vouga há dez dias, era só um dos mais bonitos daquela viagem. Belo, longo e solitário, com pó e alcatrão na medida perfeita, subidas e descidas na mesma proporção, curvas e contracurvas belíssimas, canyons escondidos, vales mágicos e, claro está, com o excitex do rio Teixeira sempre a fazer companhia. Mas a verdade é que se nada disto houvesse, seria exatamente a mesma coisa.
– Olha ali um poço, Andreia.
– Bolas, assim nunca mais chego a casa…
– Qual delas?
Parabéns ! Fantástica aventura !
Parabéns ! Fantástica aventura !
Muito obrigada pelo apoio aqui, Armando. Foi uma aventura emocionante! (Andreia)