“A primeira vez que subi a Garganta de Loriga até à Torre foi em Dezembro de 2004. Nunca mais me vou esquecer. Tinha combinado com um amigo que pouca experiência tinha, e ainda menos equipamento. Ele levava umas calças de oleado amarelas, que acabaram por ficar todas rasgadas, e sacos de plástico enfiados dentro das botas, porque não eram impermeáveis. Naquela altura usávamos uma carta militar da região e GPS, mas a orientação pouco ajudava. Apanhámos um tempo muito mau, com muito vento e nevoeiro, o que dificultava ainda mais a progressão. O chão e o céu, tudo era branco. À noite, as rajadas de vento eram fortíssimas. Mas o fim desta aventura foi o maior desafio, connosco perdidos nas escarpas a tentar descer, horas e horas à procura do caminho no meio do nevoeiro. O que nos safou foi encontrar um trilho de pegadas, provavelmente de uma raposa, que nos conduziu ao fundo do vale…” (Portugal Outdoor)
A história do Rui podia começar de outra forma qualquer, mas quisemos escolher esta profusão descritiva para começar as apresentações. O Rui é um apaixonado pela Serra da Estrela, tem 40 anos no corpo e menos 20 no espírito. Faz ciclismo há 25 e montanhismo há 20, e a sua formação é Engenharia Biofísica. Em que é que isto se traduz? O Rui explicou-nos pacientemente que Engenharia Biofísica é uma engenharia de recuperação de ecossistemas naturais, formação que utiliza para desenvolver a sua atividade profissional no desenho de rotas e experiências turísticas outdoor em Portugal.
Quando terminou o curso decidiu que ia morar para a Serra da Estrela, mais concretamente em Manteigas. “Sempre sonhei com a montanha e com a Serra da Estrela, para onde ia regularmente, mas queria estar lá de forma mais presente.”
Depois de uma breve passagem profissional pela Associação “Os Amigos da Serra da Estrela”, decidiu criar uma empresa, a Trilhos de Ideias, e alavancar assim o turismo de Natureza na região através da vertente das Caminhadas, menos desenvolvida na altura.
Foram anos dourados para a Serra da Estrela e para quem procurava os seus programas de fins de semana, que estavam sempre cheios. No início, os amigos deram aquele impulso importante para o arranque da atividade, mas rapidamente a empresa tornou-se um caso de sucesso. Qual foi o segredo? “Tratava as pessoas como amigos. Recebê-las como amigos era o meu objetivo.” Sem website, usava o facebook, e-mail e mensagens personalizadas como forma de comunicação direta com as pessoas que levava consigo.
Com experiência e formação de guia desde cedo, percebeu que os grupos mais pequenos eram o que lhe dava mais prazer e a possibilidade de fazer aquilo que tanto gostava – receber as pessoas calorosamente e dedicar-lhes toda a atenção durante a atividade, algumas que duravam dias, partilhando tudo aquilo que sabia sobre a serra, as plantas, os animais, a paisagem, o clima, a cultura, as glaciações… “Falava sobre tudo o que estávamos a ver. Se fazíamos a travessia em 4 dias, eu passava os 4 dias a falar.”
Com frequência ajudava o grupo na preparação da mochila, passando largas horas ao telefone. Não era estranho ligarem-lhe do interior da loja da Decathlon para pedir conselhos sobre o material que deveriam comprar. Hoje desenvolve uma parceria com a marca, desenvolvendo conteúdos sobre o equipamento que usa e dicas bastante úteis para os utilizadores que estão a começar e para aqueles que já começaram.
Foi em 2014 que recebeu a pior notícia que um profissional na área do Outdoor pode receber. Tinha as cartilagens dos joelhos muito fragilizadas, o que o obrigou a mudar de rumo e estratégia. Hoje é consultor outdoor e a sua paixão é desenhar experiências. Assim, em parceria com outras entidades profissionais, trabalha na criação de rotas, cicláveis e pedestres, e na estruturação do produto e do destino.
Com isto vêm novidades entusiasmantes para nós, aventureiros sedentos de experiências novas! É que o Rui está a trabalhar como consultor diretamente com o Estrela Geopark na sua primeira Grande Rota que está a conceber desde raiz.
É uma GR pedestre, que vai ser homologada e que terá cerca de 400 km, e cujo objetivo é que as pessoas se possam deslocar no território de forma sustentável. A Rota vai além da montanha, ao longo de 9 municípios, estruturando a oferta do território num traçado em rede e permitindo que as pessoas possam escolher o seu próprio percurso, mediante a experiência que pretendem. “Vai ser espetacular! É um produto realmente bom e acredito que vai ser muito importante para o território”. O verdadeiro desafio é, com tantos sítios espetaculares que há na Serra da Estrela, parar de se fazer alterações e não desejar que a rota passe por todo o lado.
Paralelamente, existirá também uma rota de bikepacking, com um traçado totalmente independente. É uma rota de aventura exigente, não sinalizada, com orientação por GPS ao longo dos seus quase 400 km de distância. “A rota de bicicleta tem um traçado que não posso falar ainda, mas vai permitir conhecer a serra toda. Funciona com apoio de comboio. Chegamos à serra de comboio e vamos para casa de comboio.”
De acordo com a CP, em todos os comboios podemos levar as bicicletas mas há regulamentos particulares e algumas linhas têm limitações. No alfa pendular a bicicleta tem de viajar desmontada, mas nos regionais e intercidades já não existe essa condição. A última carruagem está destinada para o efeito, e normalmente tem o desenho de uma bicicleta. Sem necessidade de fazer marcação prévia, é um serviço gratuito, mas porque só têm lugar para duas bicicletas, pode gerar alguns constrangimentos, especialmente se houver muita gente dentro da carruagem, podendo existir a possibilidade de ficarmos apeados.
Tudo o que o Rui faz transmite imensa paixão e profissionalismo.
“Não tenho intenção de deixar nenhum legado, gosto de ter experiências e de as partilhar para que outros as possam fazer.” Mas o certo é que deixa uma marca por onde passa, e não são só as sinalizações dos trilhos que desenha. O Rui tem uma página @portugal.outdoor, que alimenta com muito engenho e dedicação, “um instablog sobre cenas lá fora” e uma hashtag #portugal_outdoor para reunir microaventuras à porta de casa, nem que seja uma overnight para ir dormir à colina e regressar a casa para tomar banho e seguir para o trabalho às 8h da manhã. “Gosto muito dessa lógica. Há muitas coisas giras em Portugal e não é fácil encontrar pessoas que partilham este tipo de coisas. Quero saber onde é ‘aquela’ cascata que eu não conheço, como é que eu posso lá ir, como é que ‘aquela’ pessoa lá chegou, no fundo arranjar forma de conhecer mais e procurar informações que me ajudem a planear as minhas aventuras.” Portugal Outdoor é assim uma montra do seu percurso profissional, um portfólio digital, através do qual tem conhecido pessoas muito interessantes e que já o levaram por viagens fantásticas por Portugal.
Foi inevitável não desbravar tópicos algo sensíveis na realidade do nosso país, sobre como estamos hoje a olhar para o Outdoor e para as atividades ao ar livre, como é que era há alguns anos atrás e especular sobre como poderíamos reagir, sem pretensiosismos ou juízos críticos de qualquer espécie. O Rui acredita que a cultura de ar livre está em crescimento, mas que o caminho ainda é longo. No início, era uma meia-dúzia de pessoas que começavam uns com com os outros. Hoje em dia, a facilidade de acesso à informação e ao equipamento, a par com muitas outras necessidades de escapar para a Natureza, trouxe a massificação e a generalização de comportamentos a carecer de conhecimento técnico e talvez alguma consciência. “É frequente encontrar pessoas no trilho mal equipadas a nível de vestuário ou com a merenda num saco de plástico na mão, sem mochila, em pleno ambiente de montanha. Não sabem que o tempo na montanha muda muito rapidamente, que não há rede de telemóvel, e frequentemente metem-se em problemas. Deixam lixo, fazem muito barulho…”
Ao mesmo tempo que regista esta falta de conhecimento geral, também não concorda com a lógica de proibição e imposição de regras que restringem comportamentos. Como muitos, também já foi um iniciante e ‘uma pessoa do improviso’, ou não tínhamos começado este artigo da maneira que começámos. “É bom as pessoas irem lá para fora, de entre as que vão há uma percentagem que vai pesquisar mais sobre o assunto, que vai encontrar grupos de apoio na internet, que vai fazer amigos, que ganha uma sensibilidade nova e que vai tornar-se um amante da Natureza e um praticante de atividades ao ar livre”.
Podíamos continuar aqui com o Rui por largas horas e aventurar-nos por outros temas controversos como o campismo selvagem, ou os passadiços ou até as restrições dentro da comunidade escaladora na Serra da Estrela… A conversa rolou por muitas ideias, opiniões e argumentos, sempre de uma forma muito positiva, e acreditamos que é essa postura que a comunidade outdoor precisa.
Prometemos que vamos trazer o Rui mais vezes aqui, com informação super gira, útil e interessante de partilhar com a comunidade, e começar assim uma bela de uma Aventura em conjunto. Vamos a isso?